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dezembro 16, 2004

I Conto de Natal



«Acorda. Acabámos de chegar. Finalmente.»

Luciana do fundo do seu cabelo curto e sujo, tingido de negro sobre negro para camuflar a sua coroa loura, maldição infantil, raiz cortada, com dentes prococemente aguçados, abriu os olhos claros de vazio e olhou pela primeira vez em volta.

Através da janela do detrito rodado, pecador inconsciente de milhas acesas, apreciou a terra prometida. Perfeita na sua desolação branca e trémula. Ao longe, fingidamente inacessível, a montanha cerimoniosas no seu manto inquieto de novoeiro. Nas suas costas, pelo caminho único, desciam em magotes as gentes simples do monte, cobertos de peles e de cicatrizes. O frio chegava, assentava, subtil e mortífero. A fuga sazonal chegava ao seu fim. Os pés dos refugiados tocavam o sopé da montanha, pela primeira vez nesse ano Diferente. Tal como sempre. Tal como para sempre.

Concentrados, cegos a todo o nada à sua volta, os habitantes da serra escolhida desciam com organização. Os seus líderes, altos e límpidos, partiam os agotes em grupos, em famílias. O subterrâneo abria-se com preguiça, dolente e perro. Um a um, foram engolidos, desaparecendo. Sem pressas da vida, com suada saudade do topo do seu mundo privado, até ao último da sinistra, calada fila. O silêncio Maior empertigou-se calando, de vez, o distúrbio menor da marcha. Um último olhar curioso do líder ao detrito rodado. Nas suas entranhas Luciana e Abel esperavam, com ansiedade. O líder desceu, fechando o portão do subterrâneo atrás de si. Com delicadeza. À neve coube as honras de o selar com um beijo fio de corte. Todo o sopé da montanha respirou na certeza de que a sua imaculada textura se mantinha inalterável. Noite branca. Noite de paz. Os meninos em cinza deitados.

Luciana saiu, esticou-se, bafejada pela pureza do ar. Abel revolvia a bagageira do carro. Tirou primeiro a mala pesada, pousando-a no chão. Depois o seu saco de pano e a pequena mochila com guizos de Luciana. Sentados no chão comeram fruta tocada, biscoitos bolorentos, empurrados bem fundo pelo vinho tinto barato da derradeira garrafa. Um último olhar curioso e atento. Estavam sozinhos. Nas suas entranhas o fogo medular esperava. Arrumaram tudo. Fecharam tudo. Começaram a subir pelo caminho nas costas da montanha. Com delicadeza. Decididos e carregados, arrastando a mala pesada por uma garra invisível. A neve teve o bom senso de cobrir as suas pegadas. Todo o sopé da montanha respirou na incerteza da sua partida. Noite branca. Noite de paz. Noite de escolha e de aprendizagem. Os meninos em cinzas espalhados.

O meio exacto de um dia. Meio caminho. Pararam. Sentaram-se os dois. Beberam a água espremida do gelo que agora enchia o bucho do cantil. Comeram apenas memórias vagas, fantasmagóricas. Já não viam o sopé havia algum tempo. A verticalidade do trilho curvava a espinha, alta até ao céu branco, indistiguível do sol, o que lhes dava a impressão de estarem fechados numa caixa asséptica, de natureza branca, muda, quieta. Lembravam, quimicamente sintonizados pelo olhar, os gritos, a caça, o sangue mais escuro do que o imaginavam. O destroço, a adaga, o arrancar. A missão, a fuga. Os dias que eram todos vividos à noite. As noites que nunca mais viveriam. Sentiram-se reanimados pelo desconforto dos próprios pensamentos. Pelas vozes de tons surdos, graves que lhes faziam doer a cabeça.

«Consegues continuar?» - perguntou Abel. Luciana apalpou o bolso de dentro, deformado, do seu abafo. Sentiu-lhe ainda um pulsar quente e vísceral. A sua força. Acenou que sim com a cabeça. Abel beijou-a nos lábios. Não pode sorrir. Já não o sabia. Limitou-se a fechar os olhos, levantar-se, caminhar com esforço. Era a sua vez de carregar a mala pesada. Assim o fez, sem coragem ou entusiasmo. Por pura obediência. Abel seguia um pouco mais à frente. O seu olho de prata sempre observando, acarinhando Luciana. Daqui a pouco chegariam. Sabia disso, e a cada passo novo fervia a neve debaixo dos seus pés. Luciana imitou-o. Seguia-o de perto agora. No limiar dormiram, caindo em sonhos até ao limite último da sua viagem.

«Acorda. Acabámos de chegar. Finalmente.»

O cinzento poeirento e seco de um vale retorcido de treva cumprimentou os olhos de Luciana. Uma depressão aguda do solo, em forma de anfiteatro, convidava a entrar no seu uterino conforto. Velhas árvores secas, sem sombra nem sangue, rodeavam o centro, como que para abrigar segredos e códigos. De resto, desolação. Perfeita e vertical, uma tela em cinzento para preencher com cóleras. Abel foi o promeiro a descer, sem timidez. Luciana observava. Mal os seus pés ardentes tocaram o soalho crocante, os primeiros olhos brilharam na escuridão das imensas tocas e cavernasque fechavam o círculo por fora. Luciana precipitou-se imediatamente para junto de Abel. Colocaram as bagagens no chão e esperaram alguns minutos. Os Eternos Jovens saíram curvados dos buracos. Não se conheciam, no entanto, reconheceram-se. Cumprimentos efusivos em silêncios codificados seguiram-se. Estavam completos. A espera findava e começava o trabalho de enfeitar a noite por que todos esperavam há já algum tempo.

Abel começou a tirar o conteúdo da mala pesada: pequenos corpos de animais apanhados na estrada, ramos viçosos de árvores queimadas em incêndios florestais, pacotes de cartão molhado e sujo abençoados com o suor puro dos sem-abrigo, com perfume de miséria, muitos livros - romances e volumes de filosofia - ratados, unhados, urinados, extripados de bibliotecas locais, esquecidas e apodrecidas. Da caverna maior, abrigo e armazém da tribo, saía um tosco carro puxado pelas Crianças, carregado até à boca com corpos de alpinistas sem talento e sem fortuna, fuselagem de aviões caídos, com asas atadas por línguas carnudas, lixos dos homens, brinquedos fundidos de plástico e dor, serpentinas de entranhas cozidas umas às outras, um novelo de cabelo negro, sedoso, com uma vida estranha e curtas histórias de carinhos e terrores arrepiantes por contar.

Concentraram tudo isto no meio do pequeno círculo formado pela flora seca e doentia do vale. No pó escavaram um imenso buraco para o qual despejaram as entranhas em serpente, os corpos alpinísticos, enquanto que os jovens fratricídas esvaziavam, aos poucos, os detalhes macabros daqueles a quem um dia falaram ao ouvido.

A árvore-criatura, alimentada com riqueza orgânica, criou de imediato raízes e arrancou vitoriosa da terra. Códigos de aplausos foram sentidos.

O trabalho apressava-se. A noite engolia, às dentadas, a pobre fatia de astro solar ainda presente. Pirâmides cresciam de Gente Pequena e Fresca cresciam em paralelo nas quatro extremidades da área. Os corpos dos pequenos animais serviam de enfeite inferior à árvore-criatura. Escadas toscas de madeira podre, ligadas por cipó seco, permitiam a alguns alcançar os braços da criatura. Aí, começaram a desenrolar o novelo de cabelo, que caía, onde era preso por estacas numa simetria perfeita e diabólica. O resto dos elementos foi espalhado pelo Jovem mais Eterno, com requintes de decorador surreal, conseguindo dividir o bric à brac de dejectos fantasistas com uma habilidade aracnídea. Quando desceu, códigos de reconhecimento foram-lhe prestados. Alguém se atreveu a um código de aplauso, terrivelmente excitado pelo espírito da época.

O lusco-fusco ordenou a todos que se sentassem em inevitável círculo. Antes que a noite caísse, todos os Eternos Jovens fecharam o seu punho esquerdo sobre um montinho de cinza. Ao código combinado todos lançaram o seu punhado sobre a árvore-criatura. Com um movimento agitado e obsceno, esta completou-se fisicamente. Todas aquelas pequenas mentes engolidas deram-lhe vida espiritual e de forma absoluta tudo se apagou à sua volta. Numa obscuridade perfeita, sem tomo, nem alma, nem sentimento algum. No esmagamento presencial do contorno do colosso, que um a um tocava com os seus longos braços-rams, a pingar sangue e cabelo, na testa delicada dos Eternos Jovens, em cinzas, agora, deitados. Tal como sempre, tal como para sempre.

Luciana levantou-se, única e brilhante. Apalpou o seu pequeno bolso, deformado. Com cuidados de moribundo retirou dele um pequeno coração, vermelho vivo e morto, pulsando histérico de sair, dentro do seu pequeno punho anelado. Levitou, até ao cimo da árvore-criatura. Simbolicamente tocou-lhe a testa enrugada e fina. Colocou o coração no seu topo, iluminado com cegueira os corpos deitados, felizes, da crianças dormindo nas cinzas, embaladas pela inocência e pureza do desperdício e do mal.

A queda sem fim iniciou; do cimo da sua visão utilizou o código da palavra proibido, que ressoava com a voz abismal de todas as pequenas feridas e buracos nos quais nos escondemos:

«Não vejo uma estrela cadente guiando as pessoas. Vejo pessoas que tropeçam, algumas que caem, troçando das luzes. Vejo pessoas em carros, em estradas sem fim, desejando que o que vêem ao longe não sejam pequenos corpos de animais destroçados pela velocidade, perdidor, mas sacos de cartão amolgados, panos enrodilhados e sujos de alívio. Vejo o bem e o mal, vestidos com saias e calções curtos, de tranças e cabelos riscados, rindo com dentes estragados das nossas pesquisas. Vejo a travessura imbecil das queimaduras da vida e da morte. Vejo a mão esquerda pegar em lâminas e decepar a sua gémea direita. Vejo o movimento para trás. Não vejo heróis literários vivendo em fumaças pensativas e triângulos amorosos de mel e merda. Vejo a contabilidade dos pactos creditados em sangues baratos. Vejo a lama das máscaras cosméticas e espirituais. Vejo o fim da História, despercebido e fatal. Vejo-me a cair, vejo o fundo, como o único sorriso fiel. E queimo os meus lábios quando mordo os pulsos na desesperada tentativa de não mais acordar.»

Fora do meu quartinho de cinzas, o barulho insuportável da Mentira abocanhando moles pedaços de peru, rasgando fitas vermelhas, brindando com Porto antigo, engasgada até à morte com o doce da Espera. Ladaínha sem fins.

«Subo ao banquinho,
ponho o colar,
na esperança da queda
sem fim.
Do sorriso rasteiro,
do sempre voltar.
Espero inquieta na paz,
inteira por dentro,
que ninguém me venha
agora chamar.»


FIM


Fernando Ribeiro [Os Meninos em Cinzas Deitados]
Jornal Blitz, 24/12/2001